Proteja seus sapatinhos vermelhos
Um guia poético para reconhecer armadilhas e voltar à essência feita a mão
Desde que o outono chegou, tirei da estante o exemplar surrado e muito marcado de Mulheres que Correm com os Lobos, da autora Clarissa Pinkola Estés, publicado em 1989. Tinha tido alguns encontros com Baba Yaga e queria reler o significado da história da velha bruxa do ponto de vista psíquico, algo que a escritora explora com profundidade nessa obra. Clarissa pesquisa contos e histórias antiquíssimas e faz uma interpretação psicológica desses relatos para revelar o espírito do que ela chama de Mulher Selvagem. Foi umas das minhas referências ao escrever A Jornada da Louca, e por isso o livro está cheio de marcadores e notas.
A existência alarmante de violência doméstica fez com que o conto do Barba Azul, além da história de Baba Yaga, se tornasse bastante popular. O livro permaneceu entre os mais vendidos no Brasil nos últimos anos. Mas a imagem de outro conto, talvez menos conhecido, começou a circular em meus pensamentos. Ele surgiu na lembrança de uma bota vermelha lustrosa que eu tinha quando criança — minha cor preferida. Pensar nessa bota me deixava muito alegre.
A lembrança me fez querer reler a história Sapatinhos Vermelhos, capítulo 8 desse livro. Quando uma história chega até você de uma forma bastante enigmática, através de uma lembrança, uma conversa, ou uma sensação ao ouvir as folhas das árvores balançando no vento, tenha certeza que há algum aprendizado que precisa investigar mais a fundo.
Leitura
Li o conto e a interpretação de Clarissa de Sapatinhos Vermelhos num sábado de manhã, sentada num banco gelado do Hyde Park, um dos grandes parques que fica no coração de Londres. Foi tão importante relembrar as armadilhas que dançam junto com os sapatinhos vermelhos que pensei em compartilhar minhas reflexões numa espécie de guia poético. Por isso, segue-se aqui um resumo do conto, e um apanhado bastante pessoal da interpretação do mesmo.
Sapatinhos Vermelhos
Era uma vez uma menina órfã muito pobre, que se faz sapatinhos vermelhos de lã grossa. Ela fica muito feliz com sua criação. De repente, uma carruagem dourada cruza seu caminho, e a convida a entrar. A Senhora da carruagem oferece a menina abrigo e uma nova vida, e lhe dá roupas novas, jogando os sapatos vermelhos feito a mão no fogo, onde viram cinzas.
A menina tem que ser obediente e bastante silenciosa na sua nova vida. Precisa fazer tudo o que a Senhora manda, como uma boa menina. Logo, começa a sentir saudades dos seus sapatos vermelhos… No dia da sua Crisma, a Senhora leva a menina ao sapateiro para comprar sapatos novos. Ela escolhe os sapatinhos vermelhos de verniz que brilham como duas maçãs no alto da estante. A menina sabe que a Senhora não os enxerga direito devido ao seu problema nos olhos. Os sapatos são extravagantes e levam a menina a ter uma crise de dança espontânea na Igreja. A Senhora acha aquilo muito feio, e finalmente vê os sapatos. Esconde-os, dizendo para a menina nunca mais os tocar.
A menina tenta ser boazinha e obedecer. No entanto, ainda deseja os sapatos. Rouba-os e imediatamente sai dançando pela cidade. Os sapatos não param: fazem ela rodopiar, girar, até ela começar a se sentir enjoada, e muito cansada. Eles a levam floresta a dentro, rio acima, ponte abaixo, dançando, sem parar.
Passam-se dias e a menina continua a dançar. Finalmente os sapatos terríveis as levam perto da casa de um marceneiro no interior da floresta. Ela suplica para ele acabar com sua agonia e lhe cortar os pés.
E ele assim o faz.
Interpretação
Nossa essência é representada pelos sapatos feitos a mão. Não importa o quão feios ou simplórios se pareçam, os sapatinhos foram feitos por nós, e nos dão bastante alegria. Com tempo e dedicação, vamos fazer outros, e a cada novo sapatinho, mais aprendemos e melhoramos eles, mantendo nosso estado natural de criação e alegria.
O problema acontece quando a carruagem dourada aparece, e uma Senhora idosa, que representa o que ficou parado e congelado na psique, nos oferece uma nova vida. Essa é a primeira armadilha. Acreditar que a vida que a Senhora está nos oferecendo é melhor que nossos simplórios sapatinhos nos seduz e nos afasta da nossa essência. Quando os sapatinhos são destruídos as cinzas, nossa vida criativa vai junto e ficamos com uma sedenta fome de alma.
A fome é tão grande que faz a gente acreditar que qualquer coisa vai nos salvar. Essa é a segunda armadilha. Um casamento, uma bolsa, um trabalho, uma mudança de cidade, um projeto, agarramo-nos a qualquer coisa porque queremos de volta nosso sapatinho. Ou então o excesso de bebidas, comidas, exercícios físicos, a fome é muito grande e a busca incessante. No entanto, não é suficiente para tapar o vazio que sentimos quando estamos vivendo uma vida que parece um cativeiro, representada pela casa da Senhora. Esse vazio não é o vazio cheio da vacuidade dos conceitos budistas. É um vazio de alma.
Podemos estar bastante depressivas nesse estágio, e sem ânimo para nada. Ao ir ao sapateiro, e avisar o sapato vermelho de verniz na estante, tudo o que reprimimos nessa vida de cativeiro sai das sombras. Conseguimos transgredir as regras. Escolhemos os sapatos vermelhos, achando que eles são o que finalmente nos salvará da nossa miséria de alma.
Pode ser que vivamos uma vida dupla nessas alturas, como a menina que esconde seu desejo pelos sapatos. Escondemos sonhos, um poema antes do trabalho, uma canção, um insight espiritual, mas viver nesse mínimo não nos alimenta. Podemos sonhar que vai, e acreditar em promessas que vai dar certo. Outra armadilha. Então tentamos obedecer, e ser boazinhas, e dizer sim, sim, sim, eu vou me adaptar, vai dar tudo certo, sim, eu posso deixar isso acontecer para sobreviver.
A trivialização do que é anormal é, no entanto, a quarta armadilha. Relevamos violência nas relações tóxicas, nos trabalhos que nos fazem mal, em situações coletivas que deveriam ser resolvidas para o bem de todos. Mas quando nossos instintos estão muito feridos, podemos nos acostumar, no nível individual e coletivo, com a agressão – no caso da menina, com a casa e a vida de cativeiro que a Senhora lhe deu.
Então quando já tentamos de tudo: saciar nossa fome com obsessões, ter uma vida dupla, adaptar-nos mesmo que isso signifique uma obediência dolorida, achamos que o sapatinho vermelho ainda pode nos salvar… não só achamos, dependemos da ideia de que ele vai nos salvar. Calçamos eles, e dançamos, ao som daquilo que nos é mortífero. Dançamos sem parar no trabalho, na relação ou relações, na vida que não mais nos nutre e que só nos traz medo. Podemos dançar como Janis Joplin, que não soube ouvir seus instintos e morreu com vinte e sete anos de overdose. Ficamos dependentes dessa dança.
‘A armadilha consiste em tentar ficar, levando em conta o lado bom, enquanto procuramos ignorar o lado negativo. Isso está errado. Nunca poderia funcionar’, escreve Clarissa.
Imploramos para o marceneiro cortar nossos pés. Histórias que acabam com mutilação são comuns nos contos de fada antiquíssimos. Uma das irmãs da Cinderela, por exemplo, corta seus dedos para os pés caberem no sapato de cristal. Essas mutilações revelam um aprendizado psíquico importante. Porque a menina poderia simplesmente tirar os sapatos e sentir o alívio quando finalmente pára de dançar, mas não; ela sente dor. Perde os pés. É a parte mais difícil e mais bela: finalmente podemos reconhecer que temos mais uma oportunidade abençoada de vida, e recomeçar. Podemos voltar a vida feita a mão. Os pés voltarão a crescer.
Recomeço
Fechei o livro. Voltei pelos jardins de Kensington, com a menininha caminhando ao meu lado e iluminando os lugares doídos onde eu também tinha me colocado nos últimos anos. Apesar de ter publicado um livro, e continuar meus projetos criativos, ainda me sentia em vários momentos nesse lugar de vida dupla, de tristeza, de fome da alma. Havia estado em lugares que não me deixavam crescer.
Era importante recomeçar. Esse era meu momento de recosturar a vida. Parecia-me, no entanto, mais valioso ainda o entendimento que as armadilhas continuariam por aí, no nosso caminho. Ouso dizer que a própria cidade onde eu caminhava na volta para a casa, passando agora pelas lojas de departamento brilhantes com seus sinos e luzinhas da Natal, todas elas, estavam, de alguma forma, me seduzindo com o prazer e a facilidade de uma felicidade ilusória, que não necessariamente iriam me aproximar da minha essência criativa, autêntica, instintiva. Elas poderiam ser vistas, de alguma forma, como a carruagem dourada.
No mundo que o mundo ocidental construiu, por mais conveniente e maravilhoso que possa ser, é só estar vivo para milhões de carruagens douradas aparecerem na nossa linha de tempo a cada segundo. O que me faz concluir, junto com Clarissa, que é preciso absolutamente proteger nossa natureza, nossa essência, e nosso instinto. É preciso proteger porque as armadilhas fazem parte da vida. É claro que os problemas do coletivo, precisam ser discutidos, mudados e transformados. Se existem lugares de trabalho onde há exploração e violação de direitos, por exemplo, eles precisam urgentemente ser denunciados. No entanto, para continuarmos caminhando nesse mundo, precisamos costurar nossos sapatos a mão.
Sapatinhos vermelhos, de preferência, que nos lembram do sangue da vida, do sangue que faz vida, daquilo que corre dentro da gente; não do sangue de perder vida, como os sapatinhos de verniz que tiveram que ser cortados dos pés.
Congelando no parque e lendo o conto ‘Sapatinhos Vermelhos’, Londres, Dezembro de 2024.
Convite
Neste mês, convido você a refletir: onde estão seus sapatos feitos à mão? Eles estão protegendo o que é mais importante para seu bem-viver? E, se não estiverem, como você pode reconstruí-los?
Assim que você os encontrar, não deixe ninguém, por mais brilhante e sedutor que seja, colocar-os no fogo. Crie um bom sistema de proteção. Caso o pior aconteça, peça ajuda, faça um plano, e encontre um lugar seguro para recomeçar.
Costure um novo sapatinho, eu prometo, é possível ter outra chance de vida.
Desejo para você um lindo final de ano. Nos vemos em 2025.